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quinta-feira, 30 de setembro de 2010

A ASSOMBRAÇÃO DA CASA DA COLINA, de Shirley Jackson


Description:
Quatro pessoas - Dr. John Montague, investigator do sobrenatural; a tímida e reclusa Eleanor; a sensual e determinada Theodora; e o jovem Luke, herdeiro da casa - se hospedam na supostamente assombrada Casa da Colina, a fim de observar e estudar os fenômenos paranormais e estranhos ali existentes e até então sem explicação.

A crítica do Wall Street Journal e Stephen King, em seu livro Dança Macabra, colocam o livro como "uma das maiores histórias de casa mal-assombrada já escritos" e "um dos melhores e mais importantes romances de terror do século 20". The Haunting of Hill House foi escrito em 1959 por Shirley Jackson, importante autora da literatura norte-americana do pós-segunda guerra, que influenciou artistas como Neil Gaiman, Stephen King e Richard Matheson. Shirley Jackson constrói minuciosamente um clima de medo e tensão, sem jamais resvalar para o óbvio e explícito, num brilhante romance que merece ser lido por todos os amantes da literatura fantástica.

Ingredients:
Como exemplo das qualidades literárias de A Assombração na Casa da Colina, eis aqui os parágrafos de introdução das partes I e II do romance de Shirley Jackson, que por si só já falam muito:

I

"Nenhum organismo vivo pode existir com sanidade por longo tempo em condições de realidade absoluta; até as cotovias e os gafanhotos, pelo que alguns dizem, sonham. A Casa da Colina, nada sã, erguia-se solitária em frente de suas colinas, agasalhando a escuridão em suas entranhas; existia há oitenta anos e provavelmente existiria por mais outros oitenta. Por dentro, as paredes continuavam eretas, os tijolos aderiam precisamente a seus vizinhos, os soalhos eram firmes e as portas se mantinham sensatamente fechadas; o silêncio cobria solidamente a madeira e a pedra da Casa da Colina, e o que por lá andasse, andava sozinho."

II

"Nenhum olho humano pode isolar a coincidência infeliz de linhas e locais que sugerem malignidade na fachada de uma casa. E no entanto alguma justaposição demente, algum ângulo defeituoso, algum encontro fortuito de telhado e céu transformavam a Casa da Colina em um lugar de desespero, mais amedrontadora porque a fachada da Casa da Colina parecia estar acordada, vigiando pelas janelas vazias e erguendo com sarcasmo a sobrancelha de uma cornija. Quase todas as casas, tomadas de surpresa ou vistas de um ângulo inesperado, podem olhar humoristicamente alguém que as observe; até uma chaminé brincalhona, ou uma janelinha de água-furtada que parece uma covinha, podem dar ao observador um senso de camaradagem; mas uma casa arrogante e cheia de ódio, sempre defensiva, só pode ser maligna. Essa casa, que parecia de alguma forma ter se formado por si só, aglomerando-se em seu poderoso molde sob as mãos de seus construtores, acomodando-se em sua própria construção de linhas e ângulos, erguia sua enorme cabeça contra o céu sem qualquer concessão à humanidade. O exorcismo não pode alterar o semblante de uma casa; a Casa da Colina ficaria assim como estava até ser destruída."

Directions:
A Assombração da Casa da Colina
(The Haunting of Hill House)
de Shirley Jackson. 1959.
Tradução de Edna Jansen de Mello.
Capa de Jader Marques Filho.
Coleção Mestres do Horror e da Fantasia.
Editora Francisco Alves, 1983.

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Conto (16): "OS FATOS NO CASO DO SR. VALDEMAR", de Edgar Allan Poe

Não devemos nos assombrar pelo fato de o caso do senhor Valdemar ter suscitado tantas discussões. Milagroso seria que as coisas não se tivessem passado assim, particularmente naquelas circunstâncias. O desejo comum a todas as partes interessadas de que o assunto se conservasse secreto, pelo menos de imediato, ou enquanto aguardasse a oportunidade de uma nova investigação, e os nossos esforços no sentido de obter um triunfo deram lugar a que se tivesse difundido um relato incorreto ou exagerado entre o público e que o assunto, apresentado com as cores mais desagradáveis, tenha dado origem a um grande descrédito.

Assim, é preciso que dê conta dos fatos, pelo menos tal como eu os compreendo e de uma maneira breve. Ei-los:

Várias vezes, no decurso dos últimos três anos, a minha atenção tinha sido atraída pelo magnetismo; e, há cerca de nove meses, acudiu-me subitamente à imaginação a idéia de que existia uma enorme e inexplicável lacuna na série de experiências feitas até o presente: ninguém havia sido mesmerizado in articulo mortis. Faltava saber se em tal estado o paciente podia receber o influxo magnético; em segundo lugar, se, em caso afirmativo, o influxo era atenuado ou ampliado devido a esta circunstância e, em terceiro lugar, até que ponto ou durante quanto tempo as usurpações da morte podiam ficar paralisadas por esta operação. Dever-se-ia verificar outros pontos, mas os anteriores eram os que mais excitavam a minha curiosidade, principalmente o último, em virtude do seu caráter transcendente.

Procurando à minha volta um indivíduo por meio do qual pudesse aclarar estes pontos, decidi-me pelo meu amigo Ernest Valdemar, compilador muito conhecido na Biblioteca Forense e autor (com o pseudônimo de Issachar Marx) das traduções polonesas de Wallenstein e de Gargântua. O senhor Valdemar, que residia habitualmente no Harlem (Nova Iorque), desde 1839, é, ou era, particularmente notado devido à sua excessiva magreza: os seus membros inferiores pareciam-se muito com os de John Randolph. Também dava na vista devido à brancura das suas grandes suíças, que contrastavam com a cabeleira negra, a ponto de muita gente pensar que ele usava peruca, tal a diferença de cores. Possuía um temperamento invulgarmente nervoso e era um excelente elemento para as experiências magnéticas. Em duas ou três ocasiões tinha-o feito adormecer sem grande dificuldade. Contudo, fiquei desconcertado a respeito de outros resultados que esperava obter da sua tão singular constituição. A sua vontade nunca esteve completamente sob a minha influência e, no que se refere à clarividência, nunca pude conseguir nada que pudesse considerar-se concludente. Eu sempre atribuíra os meus fracassos à sua precária saúde. Alguns meses antes de o conhecer, os médicos haviam-lhe diagnosticado uma tuberculose muito avançada. Devo também dizer que ele tinha o costume de falar com muito sangue-frio do seu fim próximo, como de uma coisa que não podia ser evitada nem sentida.

Quando me ocorreram pela primeira vez as idéias a que fiz referência, era muito natural que pensasse no senhor Valdemar. Conhecia suficientemente bem a filosofia do homem para recear quaisquer escrúpulos da sua parte e, como não tinha nenhum parente na América não era de temer este gênero de intervenção. Falei-lhe abertamente e verifiquei, com grande surpresa, que ele demonstrava um vivo interesse. Digo com grande surpresa porque, ainda que ele se tivesse prestado amavelmente às minhas experiências, nunca manifestara o menor interesse pelos meus estudos. A sua enfermidade era daquelas que permitem um cálculo exato quanto à hora do desenlace, e combinamos que ele mandaria chamar-me 24 horas antes do momento que os médicos indicassem para a sua morte.

Há sete meses recebi a seguinte carta do senhor Valdemar:

“Meu caro P…
“Já pode vir. Os doutores D… e F… estão de acordo e disseram-me que não passarei de amanhã. Creio que o cálculo deles deve ser bastante aproximado.”

Recebi esta carta cerca de meia hora depois de ter sido escrita e 15 minutos mais tarde encontrava-me no quarto do moribundo. Não o via há 15 dias e fiquei aterrado com a terrível alteração que este curto espaço de tempo tinha produzido nele. O seu rosto tinha a cor do chumbo, os olhos pareciam apagados e a sua magreza era tal que as maçãs do rosto estavam quase completamente descarnadas. Expectorava constantemente e tinha o pulso quase imperceptível. No entanto, conservava todas as suas faculdades espirituais e falava distintamente, tomando, sem necessidade de auxílio, alguns remédios que eram simples tranqüilizantes. Quando entrei no quarto, estava ocupado em escrever alguma coisa numa agenda. Achava-se amparado pelas almofadas da cama e era auxiliado pelos doutores D… e F…

Depois de ter apertado a mão de Valdemar, chamei os médicos de parte e pedi-lhes que me informassem acerca do estado do doente. Há cerca de oito ou dez meses, o pulmão esquerdo encontrava-se parcialmente ossificado e cartilaginoso e, portanto, incapacitado para toda a função vital. A parte superior do pulmão direito também se apresentava ossificada, embora não na sua totalidade, enquanto a parte inferior não passava de uma massa de tubérculos purulentos que penetravam uns nos outros. Havia, também, algumas perfurações profundas e, em determinada região, uma aderência permanente às costelas. Estas deteriorações do lóbulo eram de uma época relativamente recente. A ossificação tinha-se desenvolvido com uma rapidez insólita. Um mês antes não se descortinava o menor sintoma e a aderência havia sido assinalada somente nestes últimos dias. Independentemente da tuberculose, os médicos suspeitavam de um aneurisma da aorta, mas, a este respeito, os sintomas de ossificação tornavam impossível qualquer diagnóstico seguro. A opinião de ambos os médicos era de que o senhor Valdemar morreria por volta da meia-noite do dia seguinte, domingo. Eram, naquele momento, sete e meia da noite de sábado.

Ao abandonar a cabeceira do moribundo a fim de falar comigo, os doutores D… e F… tinham-se despedido dele pensando em não mais voltar. Todavia, a meu pedido, concordaram em tornar a ver o doente cerca das dez da noite.

Depois que eles se retiraram, falei livremente com o senhor Valdemar a respeito da sua morte próxima, e mais particularmente da experiência que tínhamos combinado realizar, e ele mostrou-se desejoso de iniciá-la imediatamente. Dois enfermeiros, um homem e uma mulher, deviam ajudar-nos. Porém, não me atrevia a empreender uma experiência de tamanha gravidade sem outras testemunhas cujas declarações oferecessem mais confiança no caso de surgir um acidente repentino. Acabava de marcar a operação para as oito quando a chegada de um estudante de Medicina, com o qual o senhor Valdemar tinha relações de amizade, o senhor Theodore L…, me ajudou a resolver a situação. Tinha pensado, a princípio, esperar pelos médicos, mas comecei logo, impelido não só pela insistência do senhor Valdemar, como também porque não havia tempo a perder.

O senhor L… acedeu amavelmente ao pedido que lhe expressei de que tomasse nota de tudo o que se ia passar e posso afirmar que anotou, palavra por palavra, o que aconteceu, pois foi a partir das suas notas que compilei este relato, com exceção de algumas partes que condensei.

Eram oito e cinco da noite quando, pegando na mão do doente, pedi-lhe que repetisse ao senhor L..

tão claramente quanto lhe fosse possível, o seu desejo de que eu fizesse com ele e naquelas condições, uma experiência de mesmerismo.

Valdemar repetiu em voz fraca, mas muito claramente:

- Sim, desejo ser mesmerizado. - E acrescentou em seguida: - Receio que já tenha passado tempo demais.

Enquanto ele falava, eu havia iniciado os passes que me pareciam mais eficazes para o adormecer. t certo que ele começou a sentir a influência da minha mão desde o primeiro passe hipnótico, mas, embora eu emanasse todo o meu poder, não se manifestou qualquer efeito apreciável até as 10h10m, momento em que os médicos D. e F. chegaram. Expliquei-lhes em poucas palavras o que pretendia e, como não puseram qualquer objeção, garantindo-me que o doente tinha entrado no período de agonia, continuei sem hesitação, substituindo os passes laterais por passes longitudinais e concentrando o meu olhar nos olhos do moribundo.

Enquanto isso, o pulso do senhor Valdemar tornara-se imperceptível e a sua respiração cada vez mais difícil, chegando a ficar suspensa durante períodos de cerca de meio minuto.

Esta situação manteve-se durante um quarto de hora, quase sem qualquer alteração.

Não obstante, ouvimos, decorrido este tempo, um suspiro natural, ainda que horrivelmente profundo, interrompendo-se a respiração entrecortada, quer dizer, cessando o estertor e passando a respirar com regularidade. As extremidades do doente estavam geladas.

Às 10h45m detectei sintomas indesmentíveis da influência magnética. O olhar vítreo e hesitante alterou-se, notando-se então aquela expressão penosa do olhar interior, que se observa somente nos casos de sonambulismo e acerca do qual não pode haver engano. Com alguns passes laterais rápidos fiz-lhe tremer as pálpebras, como quando temos sono, e, insistindo um pouco mais, fechei-as por completo. Todavia, isto não me bastava, e continuei com vigor os meus exercícios, projetando intensamente a minha vontade, até ter paralisado completamente os membros do doente adormecido, depois de o ter colocado numa posição aparentemente cômoda. As suas pernas estenderam-se por completo e os braços ficaram quase totalmente distendidos, repousando sobre o leito, a pequena distância dos rins. A cabeça achava-se ligeiramente elevada.

Já passava da meia-noite quando completei esta fase, e pedi aos presentes que observassem o estado do senhor Valdemar. Após algumas experiências, reconheceram que ele se encontrava num estado de catalepsia sumamente perfeita. A curiosidade dos dois medicos estava excitada em alto grau. O doutor D… decidiu, repentinamente, permanecer durante a noite inteira ao lado do doente, e o doutor F… retirou-se, prometendo voltar de madrugada. O senhor L… e os enfermeiros também ficaram.

Deixamos o senhor Valdemar completamente tranqüilo até as três da manhã e, a esta hora, aproximei-me dele e encontrei-o no mesmo estado em que o deixara o doutor F…, isto é, achava-se estendido na mesma posição, o pulso era imperceptível e a respiração regular, embora mal se sentisse, pois para se verificar a sua existência era necessário colocar-lhe um espelho diante da boca. Tinha os olhos fechados com naturalidade e os membros tão rígidos e frios como se fossem de mármore.

No entanto, a sua aparência geral não era a de um morto.

Ao aproximar-me do senhor Valdemar, fiz um pequeno esforço para obrigar o seu braço direito a seguir o meu nos movimentos que eu descrevia vagarosamente sobre a sua pessoa.

Noutras ocasiões, quando tentara estas mesmas experiências com o doente, nunca tinha triunfado por completo, e posso afirmar que também desta vez não contava com resultados satisfatórios. Todavia, verifiquei com grande espanto que o seu braço seguia muito suavemente, embora com pequena amplitude, todas as direções que o meu indicava. Tratei, então, de lhe fazer algumas perguntas.

- Senhor Valdemar - disse-lhe - está dormindo?

O senhor Valdemar não respondeu, mas, como visse que ele tremia os lábios, repeti a pergunta três vezes. Na terceira vez, um estremecimento percorreu-lhe o corpo. As pálpebras entreabriram-se sozinhas, deixando a descoberto uma pequena parte do globo ocular. Os lábios moveram-se devagar e deixaram escapar as seguintes palavras, num murmúrio quase indecifrável:

- Sim, estou dormindo. Não me acorde! Deixe-me morrer assim!

Apalpei-lhe os membros e encontrei-os tão rígidos como anteriormente. O braço direito, como fizera até momentos antes, obedecia às direções indicadas pela minha mão. Interroguei de novo o sonâmbulo:

- Ainda lhe dói o peito, senhor Valdemar?

A resposta fez-se esperar um pouco e ele murmurou com voz mais débil que da vez anterior:

- Dor? Não, estou morrendo,

Achei conveniente não o atormentar mais por enquanto e nada mais lhe disse até chegar o doutor F… que ficou assombrado ao ver o doente ainda vivo, quase ao amanhecer. Depois de lhe ter tomado o pulso e de lhe pôr um espelho diante da boca, pediu-me que falasse de novo com o moribundo, o que fiz da seguinte maneira:

– Senhor Valdemar, ainda continua dormindo?

Como anteriormente, ele tardou alguns minutos a responder, e, durante este intervalo, o senhor Valdemar parecia reunir toda a sua energia para falar. Ao interrogá-lo pela quarta vez, respondeu muito fracamente, de uma forma quase ininteligível:

- Sim, estou dormindo, morrendo.

Os dois médicos foram então de opinião, ou, melhor, exprimiram o desejo de que não se incomodasse o senhor Valdemar, deixando-o estar naquele estado de coma aparente, até que morresse. E isto devia ocorrer, prognóstico em que ambos estavam de acordo, no prazo de cinco minutos. No entanto, decidi falar-lhe de novo, repetindo a minha pergunta anterior.

Enquanto falava, operou-se uma grande modificação na fisionomia do moribundo. Os olhos giraram nas órbitas e abriram-se, a pele adquiriu a tonalidade da morte, e duas manchas circulares, febris, que até pouco tempo atrás se achavam claramente fixadas nas faces, apagaram-se de repente. Sirvo-me desta expressão porque a rapidez da sua desaparição fez-me lembrar uma vela que se apaga com um sopro. Ao mesmo tempo, o lábio superior contraiu-se, deixando os dentes a descoberto, enquanto o maxilar inferior caía bruscamente, produzindo um ruído que foi ouvido por todos, deixando a boca aberta e descobrindo completamente a língua negra e inchada. Presumo que todos os presentes estavam familiarizados com o espetáculo da morte, mas, no entanto, o aspecto do senhor Valdemar naquele momento tornou-se tão hediondo que todos recuamos, horrorizados.

Suponho que, ao chegar a este ponto, o leitor revoltado não queira dar-me crédito. No entanto, é meu dever continuar.

O senhor Valdemar não apresentava o menor indício de vida e, julgando que ele estava morto, íamos deixá-lo entregue aos enfermeiros, quando ouvimos um murmúrio que brotava da sua boca e que duraria cerca de um minuto. E ouvimos uma voz que seria loucura tentar descrever. Apesar disso, há dois ou três vocábulos que se poderiam aplicar, embora não dêem uma idéia cabal. Assim, posso dizer que o som era áspero, dilacerante e cavernoso. Porém, a descrição total não é definível, pois nenhum ouvido humano registrou jamais tais vibrações. A despeito de tudo, havia duas particularidades que, pensei então e ainda continuo a pensar, podiam considerar-se como características da sua entoação e que podem dar alguma idéia da sua singularidade extraterrestre. Em primeiro lugar, a voz parecia chegar aos nossos ouvidos, ou pelo menos aos meus, vinda de grande distância, como que surgida de um subterrâneo. Em segundo lugar, impressionou-me da mesma maneira (receio que seja impossível fazer-me compreender), da mesma maneira, dizia, que as matérias pegajosas e gelatinosas afetam o tato.

Falei ao mesmo tempo em som e voz, mas é meu desejo dizer que, no som, destacavam-se as sílabas com muitíssima clareza, com uma clareza terrível e espantosa. O senhor Valdemar falava, evidentemente para responder à pergunta que lhe tinha feito momentos antes. Como devem recordar-se, tinha-lhe perguntado se continuava dormindo ao que agora me respondia:

- Sim, dormi, eis que agora me encontro morto. Nenhuma das pessoas presentes pôde negar nem sequer pôr em dúvida o indescritível, o extremo horror destas palavras assim proferidas.

O senhor L…, o estudante, desmaiou. Os enfermeiros fugiram precipitadamente e não houve maneira de conseguir que voltassem. Quanto às minhas próprias impressões, não pretendo que o leitor chegue a compreendê-las. Durante perto de uma hora, sem trocarmos uma palavra, esforçamo-nos por fazer o jovem L… recobrar os sentidos. Quando voltou a si, prosseguimos as nossas investigações acerca do estado do senhor Valdemar.

Este continuava tal e qual descrevi anteriormente. Porém, não se obtinha o mínimo vestígio de respiração com o espelho. Uma tentativa de sangria num braço não teve êxito. Devo também dizer que o seu braço não obedecia à minha vontade e foi inutilmente que tentei fazê-lo seguir a direção da minha mão. A única indicação real da influência magnética apenas se manifestava pelo movimento vibratório da língua. Cada vez que dirigia uma pergunta ao senhor Valdemar, este parecia fazer um esforço para responder-me, como se já não dispusesse de vontade suficiente. Se algum dos presentes, excetuando eu próprio, lhe dirigia alguma pergunta, parecia insensível, embora eu tivesse tratado de pô-lo em relação magnética com eles. Creio agora ter relatado tudo o que é necessário para fazer compreender o estado do sonâmbulo neste período… Tratamos de arranjar outros enfermeiros e, às 10 horas, retirei-me, na companhia dos médicos e do senhor L…

À tarde, voltamos todos para ver o doente. O seu estado era absolutamente o mesmo. Travamos então uma discussão acerca da oportunidade e da possibilidade de despertá-lo, e não tardou que todos compreendêssemos as poucas vantagens que isso representaria para o senhor Valdemar. Era evidente que até aquele momento, a morte, ou o que se define pelo vocábulo morte, tinha ficado paralisada pelo magnetismo. Pareceu a todos evidente que despertar o senhor Valdemar seria, muito simplesmente, provocar, ou pelo menos acelerar, o seu fim.

Desde este dia até o último da semana passada, isto é, durante um período de quase sete meses, continuamos a reunir-nos em casa do senhor Valdemar, acompanhados de vários médicos e amigos. Durante todo este tempo, o sonâmbulo continuou no mesmo estado que já descrevi. Os enfermeiros vigiavam-no continuamente.

E na última sexta-feira, resolvemos despertá-lo, ou, pelo menos, tentar despertá-lo. O resultado deplorável desta última tentativa é que deu lugar a tantas discussões nos círculos privados, a tantos boatos, nos quais não posso deixar de ver uma injustificada credulidade popular.

Para arrancar o senhor Valdemar da catalepsia magnética fiz um dos passes habituais. Durante algum tempo não deram qualquer resultado, O primeiro sintoma de vida foi uma depressão parcial da íris. Observamos, como fato digno de nota, que esta depressão foi acompanhada de um fluxo muito abundante de um líquido amarelado, surgido de sob as pálpebras e que tinha um cheiro acre e muito desagradável.

Ocorreu-me então a idéia de exercer a minha influência sobre o braço do paciente, como fizera anteriormente. Nada consegui, apesar dos meus esforços. O doutor F… manifestou o desejo de que eu lhe fizesse uma pergunta. Fi-la nos seguintes termos:

- Senhor Valdemar, pode explicar-nos o que neste momento sente ou deseja?

As suas faces voltaram imediatamente a colorir-se com as manchas febris, a língua estremeceu, ou melhor, girou-lhe violentamente dentro da boca (embora os maxilares e os lábios continuassem imóveis) e ao fim de certo tempo tornamos a ouvir a pavorosa voz que já descrevi:

- Pelo amor de Deus!. .. Depressa! Depressa!… Faça-me dormir… ou então… depressa!… desperte-me! Depressa! Já lhe disse que estou morto!

Senti-me completamente aturdido e durante um minuto fiquei sem saber o que havia de fazer. Primeiro, tratei de tranqüilizar o paciente, mas a falta de vontade fez-me fracassar, e, em vez de acalmá-lo, envidei os meus esforços no sentido de despertá-lo. Em breve verifiquei que esta minha tentativa obteria êxito, ou pelo menos assim pensei, e estou certo de que todos os que se encontravam no quarto esperavam ver o sonâmbulo despertar.

Porém, é de todo impossível que algum ser humano estivesse preparado para o que sucedeu realmente.

Enquanto eu fazia os passes magnéticos, no meio de gritos de morto!, morto!, que literalmente explodiam na língua e não nos lábios do paciente, todo o seu corpo, subitamente, no espaço de um minuto ou menos, contraiu-se, diminuiu, desapareceu, apodreceu completamente debaixo das minhas mãos. Em cima da cama, diante dos olhos de todas as testemunhas, jazia uma massa repugnante, quase líquida, uma abominável putrefação.

quarta-feira, 22 de abril de 2009

DEPOIS - Sete histórias de horror e terror


Description:
Organização e tradução de Heloísa Seixas.
Editora Record, 1998.

“Quando objetos do cotidiano são marcados por uma sugestão de horror, estimulam a imaginação mais do que os objetos de aparência estranha." (“Os Salgueiros”, de Algernon Blackwood)


Uma ótima antologia de contos de horror de autores de talento e prestígio, numa seleção que foge do óbvio e propicia a novas descobertas literárias. Heloísa Seixas está de parabéns como organizadora, tradutora e com fino talento para escolha de excelentes textos.


Ingredients:
“Depois”
de Edith Wharton
(1862-1937)
Um casal de americanos abastados procura uma casa tranqüila e o mais precária possível no interior da Inglaterra, e ao perguntarem se o lugar tem fantasma, ouvem da prima da esposa: “Ah, claro que tem sim, mas vocês nunca vão saber”. Essa é a premissa do conto da escritora americana autora de “A Era da Inocência” e uma das favoritas de F. Scott Fitzgerald. O clima bem humorado do início vai dando lugar a algo que parece um sonho estranho, sufocado. A protagonista me faz lembrar alguma heroína angustiada dos primeiros filmes americanos de Hitchcock. No fim fiquei com uma leve sensação de ter sido traído, de que Edith Wharton me entregou não exatamente o que prometeu. Mesmo assim, mesmo tendo saboreado um prato que não pedi, fiquei satisfeito com o bom gosto da “chef”. E um bônus: o conto me deu idéia para escrever meu próprio conto de fantasma. (39 págs.)

“O Túmulo”
de H. P. Lovecraft
(1890-1937)
O maior especialista no assunto de toda essa coletânea aparece aqui com uma narrativa mais lúgubre e funesta do que macabra e apavorante, com ressonâncias de seu mestre Edgar Allan Poe. Um jovem aristocrata torna-se obcecado por uma velha cripta abandonada no sopé de um morro, próximo à mansão da família, e por mais de uma década passa a ter delírios que o fazem crer que seu destino é entre os habitantes daquele sepulcro esquecido e amaldiçoado. Quem nunca leu nada do bom e velho HPL e for apresentado à sua literatura através desse “O Túmulo”, não fará idéia do que sua medonha e devastadora imaginação é capaz de produzir. (13 págs.)

“A Janela Aberta”
de Saki
(1870-1916)
O curto conto de Hector Hugh Munro (que assinava como Saki) é tanto um exercício de horror quanto de humor, aliás bem ao seu estilo. Pode-se ler como um presságio horrendo e apavorante da mesma forma que pode ser uma piada hilária e infame. Inclusive nos anos 90 (se minha memória não me falta) “A Janela Aberta” foi adaptado para o cinema no Brasil em forma de curta-metragem, tendo Janaína Diniz como a imaginativa protagonista, com extrema fidelidade ao texto original. (5 págs.)

“O Quarto Mobiliado”
de O. Henry
(1862-1910)
O mestre dos finais surpreendentes e padrinho dos desajustados e párias da sociedade norte-americana, William Sydney Porter (verdadeiro nome de O. Henry) nos presenteia aqui com um melancólico conto de amor perdido onde as coincidências podem não existir, mas as ironias macabras às vezes podem nos surpreender. Daria um excelente argumento inicial – ou final – para um longa-metragem policial contemporâneo. (9 págs.)

“Chá Verde”
de Sheridan Le Fanu
(1814-1873)
O irlandês Le Fanu, o mais velho de toda a coletânea, nos mostra aqui que horror é apenas uma questão de ponto de vista. Criaturas com olhos de fogo, macaquinhos no sótão, entidades fantasmagóricas que vem e vão, abominações perturbadoras não precisam ser necessariamente fenômenos inexplicáveis e coisas do terreno do sobrenatural. E talvez seja justamente isso o que mais perturbe nesse fantástico conto de medo e angústia. (43 págs.)

“Sonata ao Luar”
de Alexander Woolcott
(1887-1943)
Como dizia Cortázar (ou seria Hemingway?), um bom conto deve levar o leitor a nocaute. O crítico de teatro e radialista nova-iorquino Alexander Woolcott sabe levar o leitor pela mão através da escuridão até um desfecho impactante de loucura e pavor, em poucas páginas de sua rara e eficaz narrativa de terror. (4 págs.)

“Os Salgueiros”
de Algernon Blackwood
(1869-1951)
O melhor ficou para o final. Não é à toa que “Os Salgueiros” é o conto de horror favorito de H. P. Lovecraft e que este também é considerado um dos grandes contos fantásticos da língua inglesa. Dois amigos viajam pelo rio Danúbio numa canoa e decidem acampar numa ilhota no meio do rio cercada por salgueiros durante a noite antes de seguir viagem. Estranhas visões de uma lontra descomunal, um vulto num barco distante, plantas que fazem movimentos não-naturais e a clara sensação de que estão cercados por forças sobrenaturais fazem com que a dupla perceba que está na fronteira de uma dimensão desconhecida, maléfica e perigosa. As primeiras páginas são idílicas como uma pintura de Monet, quase pode-se ouvir a sinfonia Pastoral de Beethoven. Aos poucos o estranho, o insólito, vai se insinuando na paisagem, e quando se percebe, quase se sufoca em meio à ameaça inexplicável dos salgueiros e de uma ameaça que não se entende e não se vê, apenas se sente. (60 págs.)



Directions:
DEPOIS - Sete histórias de horror e terror
Organização e tradução de Heloísa Seixas.
208 páginas. 2a. edição.
Design da capa: Tita Nigri. Ilustração de Mozart Couto.
Editora Record, 1998.

domingo, 17 de agosto de 2008

Conto (12): "O ANIVERSÁRIO DA VOVÓ", de Fredric Brown

Fredric Brown (1906-1972) nasceu em Cincinnati e escreveu cerca de trezentos contos e vinte e nove romances, a maioria nos gêneros de mistério e ficção científica. Seu conto "Arena" serviu de base para o episódio da série televisiva clássica "Jornada nas Estrelas" de mesmo nome. O conto típico de Fredric Brown tem duas características principais: é curto, e aplica no leitor uma surra brutal."O Aniversário da Vovó" ("Granny’s Birthday", 1960) talvez seja um de seus contos mais breves; mas é indubitavelmente um dos mais devastadores.

Já publiquei aqui na VALISE DE CRONÓPIO o conto mais famoso desse fantástico escritor, "Resposta". Clique para ler essa pequena obra-prima. http://ozlopesjr.multiply.com/journal/item/43

* * * * * * * * * *

Os Halperins eram uma família muito unida. Wade Smith, um dos únicos presentes que não pertencia à família, invejava-os por isso, de vez que ele próprio não tinha família – mas a inveja temperava-se com uma doçura cálida, por obra do copo na mão dele.

Era a festa de aniversário da Vovó Halperin, a festa dos oitenta anos dela; todos os presentes, exceto Smith e outro convidado, eram Halperins ou levavam o nome Halperin. Vovó tinha três irmãos e uma irmã. Todos estavam lá; os três homens eram casados e tinham levado as esposas. Com isto, havia oito Halperins, incluindo Vovó. Havia ainda quatro membros da segunda geração, netos, um deles com a respectiva esposa, elevando para treze o número de Halperins. Smith contou: treze Halperins. Com ele próprio e o outro não-Halperin, um homem chamado Cross, eram quinze adultos presentes. E estiveram também presentes, mais cedo, outros três Halperins, bisnetos, mas foram levados para dormir logo no começo da noite, em horas correspondentes à idade de cada um.

E ele gostava deles todos, pensou Smith, com candura, embora, depois que as crianças foram retiradas, o álcool estivesse fluindo com abundância e a festa se tornasse um tanto barulhenta demais, para seu gosto. Todos bebiam; mesmo Vovó, sentada em uma cadeira que mais parecia um trono, tinha à mão um cálice de xerez, o terceiro da noite.

Era uma velhinha maravilhosamente doce e viva, pensou Smith. Realmente uma matriarca; como era doce! admirou Smith. Dirigia a família com uma vara de ferro em luva de veludo – ele já estava suficientemente embriagado para confundir as metáforas.

Smith estava lá a convite de Bill Halperin, um dos filçhos de Vovó; era procurador e amigo de Bill. O outro forasteiro, um certo Gene ou Jean Cross, parecia ser amigo de vários netos de Vovó.

No outro lado da sala, ele via Cross em conversa com Hank Halperin e percebeu que alguma coisa dita entre eles levara subitamente a uma discussão irada e gritada. Smith esperou que o assunto não trouxesse complicações; a festa estava agradável demais para ser interrompida por uma briga, ou mesmo altercação.

De repente,porém, Hank Halperin deu um soco no queixo de Cross e este caiu de costas. A cabeça dele bateu na quina da lareira; ouviu-se um baque surdo e ele ficou prostrado no chão. Hank correu até ele, ajoelhou-se e apalpou-o. Quando olhou em volta estava pálido, e logo levantava-se.

– Está morto – disse, desalentado. – Por Deus, eu não quis matá-lo! Mas ele disse...

Vovó já não sorria mais. A voz dela saiu resoluta, conquanto lastimosa:

– Ele tentou bater em você primeiro, Henry. Eu vi. Todos vimos isto, não foi?

Com a última frase, ela voltara-se para Smith, o forasteiro sobrevivente. Smith mexeu-se, contrafeito.

– Eu... eu não vi como a coisa começou, Sra. Halperin.

– Viu sim – interrompeu ela. – O senhor estava olhando bem na direção deles, Sr. Smith.

Antes que Wade Smith pudesse responder, Hank Halperin estava dizendo:

– Vovó, eu sinto muito, mas mesmo isto não resolve o assunto. Estamos numa dificuldade realmente grande. Lembre-se de que eu lutei durante sete anos como boxeador profissional. E os punhos de um boxeador, ou ex-boxeador, são considerados armas letais, do ponto de vista legal. Isto transforma a coisa em assassinato em segundo grau, mesmo se ele tivesse dado o primeiro soco. O senhor sabe disso, já que é advogado. E com os outros problemas que já tive, a polícia vai pegar minha ficha e jogar em cima de mim.

– Infelizmente acho que o senhor está certo – disse Smith, hesitante. – Mas não seria melhor que alguém chamasse um médico, ou a polícia, ou ambos?

– Num instante, Smith – disse Bill Halperin, o amigo de Smith. – Mas primeiro temos que acertar a coisa entre nós. Foi legítima defesa, não foi?

– Eu... Eu acho... Eu não sei o que...

– Esperem, ouçam todos – disse Vovó, com a voz dura e afiada. – Mesmo se foi legítima defesa, Henry estará em dificuldade. E vocês acham que podemos confiar nesse Smith quando ele estiver fora daqui, num tribunal?

Bill Halperin disse:

– Mas Vovó, temos que...

– Deixe de bobagem, William. Eu vi o que aconteceu. Todos vimos. Eles brigaram, Cross e Smith, e um matou o outro. Cross matou Smith e depois, tonto com os golpes que ele próprio recebera, caiu e bateu com a cabeça na pedra. Não vamos deixar que Henry vá para a cadeia, não é mesmo, meus filhos? Não um Halperin, não um de nós. Henry, machuque um pouco esse cadáver, para que ele pareça ter saído de uma briga, e não de um simples soco. E vocês outros...

Os Halperins machos, com exceção de Henry, fecharam um círculo em torno de Smith; as mulheres, com exceção de Vovó, vinham logo atrás. E o círculo estreitou-se.

A última coisa que Smith viu claramente foi Vovó em sua cadeira mais parecida com um trono, os olhos brilhantes de excitação e determinação. E a última coisa que Smith ouviu, no silêncio subitamente formado na sala, foi o som leve do risinho de Vovó. Depois veio o primeiro soco.