segunda-feira, 27 de agosto de 2007

O CARA E AS FOTOS DO HÉRCULES

Seis da manhã e o cara de pé, agitado e sorridente. Raridade. Isso porque ele estava trabalhando como fotógrafo de um grande jornal e a tarefa naquele dia era cobrir os saltos dos pára-quedistas da FAB de um grande avião Hércules. O céu estava meio encoberto e batia um vento frio na base aérea de Santa Cruz, bem ao gosto do cara. "E Ele sentiu frio... e viu que isso era bom", costumava repetir.

A intenção do cara era saltar de pára-quedas junto com a equipe e fazer imagens durante a queda. Porém o instrutor que faria o salto duplo com ele estava doente e o capacete com câmera automática acoplada – equipamento fundamental para fazer as fotos naquela situação – estava quebrado. Quando o comandante do vôo lhe deu a notícia, o tempo fechou para o cara. E como o céu abriu com tímidos raios de sol, os pára-quedistas e o cara embarcaram no grande Hércules. Terminadas as entrevistas, o repórter se despediu do amigo fotógrafo, que lhe sussurrou "não posso saltar de pára-quedas mas assim mesmo vou fazer fotos que ninguém jamais fez antes durante um vôo... me aguarde!" e se afastou rindo.

No ventre da baleia voadora, cada um se afivelou nos bancos laterais. Para o cara aquela era uma experiência nova e fascinante. Olhava tudo como uma criança, buscando algo que o ajudasse a fazer "as fotos que ninguém jamais fez antes". Perguntou como seriam os saltos e o comandante lhe explicou que os soldados fariam duas filas ao longo das paredes da aeronave e se lançariam no vazio pelas laterais da grande abertura traseira. O cara notou um longo cabo de aço preso no fundo do avião e logo teve a brilhante idéia. Contou ao comandante e lhe disse que já que não poderia saltar como havia planejado, a FAB não poderia negar-lhe esse pedido.

Assim que o Hércules alcançou a altitude certa para o exercício, o cara foi amarrado no cabo de aço pela cintura. A cloaca retangular do leviatã metálico se abriu e todos a bordo se prepararam. Enquanto os soldados fizeram a última checagem nos pára-quedas, o cara certificou-se de que estava bem preso e seguro. Todos se puseram de pé e formaram duas filas para o salto. O cara caminhou até a borda do abismo com a câmera na mão, virou-se uma última vez e puxou o cabo de aço do cinto. Fincou os calcanhares nos centímetros finais da abertura traseira, inclinou-se cerca de 40 graus para fora e mirou o vazio sob seus pés. Se tivesse acrofobia estaria morto agora, pensou. O comandante deu a ordem e os soldados lançaram-se no espaço, com seus pára-quedas e suas coragens cotidianas. Nas mãos do cara, a Nikon FM-2 registrou tudo, tendo as bordas da abertura como moldura. Assim que os pára-quedistas saltavam eram imediatamente congelados e eternizados em celulóide. Com a vida segura por apenas um tênue cabo de aço, o cara se divertia com tudo aquilo. O Rio de Janeiro era uma grande maquete abaixo dele. O vento, o ronco do motor e as manobras que o avião fazia compunham aquela montanha russa aérea, aquela diversão exclusiva que ele experimentava no horário de trabalho. E enquanto o cara imaginava a queda no abismo, o filme de 36 poses cumpriu o seu dever para o jornal.

Minutos depois a aeronave pousava na pista do Recreio dos Bandeirantes, suave como só um monstro voador sabe fazer. Satisfeito, o cara despediu-se do comandante e caminhou na direção do estacionamento, onde outro carro do jornal o aguardava. Com o resto do dia de folga, ele só lamentava não ter conseguido saltar de pára-quedas. Porém o vôo foi incrível e ficaria registrado em sua memória pelo resto da vida. A dez metros do carro de resgate, uma falha no asfalto barrou o dedão direito do cara e ele despencou de cara no chão, sobre o joelho esquerdo e as duas mãos. A bolsa da câmera também tocou o solo, apesar de bem protegida, com fotos incríveis que ninguém jamais fez antes em seu interior acolchoado. Apesar das palmas raladas e da dor forte no joelho, o cara começou a rir de si próprio, e agradeceu à divina providência por não ter tropeçado uns quinze minutos antes, lá em cima.

 

O CARA E A PANELA VIAJANTE

O cara comprou a caçarola que há meses estava procurando, de teflon, e a primeira coisa que fez foi cheirá-la. Tinha acabado de chegar da esbórnia, o longínquo país da farra e da bebedeira. Quase tropeçou nos gatos, se enroscando em suas pernas. Largou a bagagem na porta, pos um CD do Creedence pra tocar e se jogou no sofá, com a cabeça girando. Viu a panelinha em cima da mesa e resolveu descobrir que aroma ela tinha. Coisa nova sempre tem cheiro bom, pensou ele. O metal banhado em teflon ligou algumas chaves inusitadas na mente do cara. A panela tinha cheiro de viagens, corredores de hotéis, arrumações de malas, ruas molhadas de chuva, sentimento de saudades, solidão e deslumbramento em conhecer lugares novos. Surpreso, o cara cheirou a caçarola outra vez, fechou os olhos e se sentiu num quarto de hotel em Passo Fundo, caminhando pelo asfalto molhado do centro de São Paulo e no pier cultural de Belém do Pará ao por-do-sol. Estranhíssimo. Nunca poderia imaginar que uma panela seria capaz daquilo. Um dos gatos miou e o cara disse "é, eu também achei".

Enquanto nas caixas de som John Fogerty pedia que o midnight special brilhasse sobre ele, o cara olhava a caçarola em suas mãos e sorria, satisfeito em ver que tinha comprado um teletransporte olfativo por uma pechincha. E adormeceu no sofá, feliz com um gato sentado em seu peito, uma panela na mão e o gosto de Jack Daniels na boca.

O outro gato não resistiu e também foi cheirar a caçarola. Encontrou saudades do leite da mãe, das estripulias do pai e das brincadeiras com bolas de barbante e guizos coloridos, na casa onde nascera.

 

quinta-feira, 9 de agosto de 2007

O CARA E A TENTAÇÃO LITERÁRIA

Sob o escaldante mormaço do inverno carioca, com pouco mais de dez reais no bolso e uma fome etíope, o cara vagava pelos belos e sujos labirintos do Centro da Cidade. Andava no piloto automático enquanto pensava nas opções gastronômicas e com preço mais em conta que o Centro lhe oferecia. Definitivamente queria distância de sanduíches, salgadinhos gordurosos, fast food. Queria uma refeição digna e substanciosa para se comer de garfo e faca. O Esquimó, na travessa do Ouvidor, reduto dos executivos apressados de escalões menores e dos apreciadores de uma comida barata, farta e honesta, parecia ser a melhor opção. O tempo se encarregara de lapidar as pinturas de esquimós e caçada as focas nas paredes do restaurante, enquanto os velhos e barulhentos ventiladores não davam conta do mormaço e nunca honrariam o nome do simpático restaurante. Mas isso de nada importava. A diplomática e divertida atenção do garçom Alfredo, os copos extras de laranjada e o clima de fartura eram as marcas registradas do Esquimó. E o importante era se abastecer e apagar aquele vácuo que crescia em seu ventre. Depois iria caminhando feliz até em casa, para "fazer o quilo", como diria Adoniran.

Mas acontece que ao virar o leme na direção da avenida Rio Branco, caminho certo para o Esquimó, o cara se deparou com a visão de uma nova livraria – na verdade um sebo de livros. Era novo, bem arrumado, e que parecia chamar-lhe sutilmente para entrar. Todas as livrarias e lojas de discos sempre o seduziam, menos como uma femme fatalle e mais como uma cobra naja hipnotizando a vítima incauta, que se aventura em seu território. E ele, em transe, não resistiu aos chamados mudos do estabelecimento e entrou.

Em cada prateleira, uma surpresa. Sem muito se esforçar, remexer, se abaixar ou se esticar, o cara logo encontrou "O Caso dos Dez Negrinhos", de Agatha Christie, que ele considerava o romance policial perfeito e que tinha emprestado para alguém que – quase em todos os casos de empréstimo – nunca o devolveu. Na prateleira de grandes autores internacionais, Anthony Burgess acenou para ele com o sumido "1985", que o cara perdera mais de uma década antes, num passeio de barca a Niterói. Sam Shepard também se mostrou todo solícito, com seu livro de poesia em prosa "Crônicas de Motel", que o cara procurava para presentear algum amigo que fosse fã de Wim Wenders, que tirou seu "Paris, Texas" de lá. E para completar, Drummond e Clarice Lispector lhes caíram no colo, como rosas de aprendiz, prazeres inesperados, flor, telefone, moça da Ucrânia, enigmática e adorável, já criando laços de família com o incauto andarilho do Centro carioca. Resultado: o cara comprou tudo, gastou quase tudo. Mas estava feliz como uma criança com brinquedo novo, como um velho que tem uma epifania e descobre assombrado o sentido da vida num detalhe aparentemente insignificante que mais ninguém percebe.

Saiu do sebo agradecido até seu estômago reclamar de seus impulsos de consumo literário. O que fazer com tantos livros amados e um rombo no estômago? O cara deixou o Esquimó para outra ocasião e foi caminhando para casa, 40 minutos consumindo as solas dos sapatos de couro, agarrando seu pacote de livros como um valioso tesouro de Estado. Lembrou-se de um velho filósofo grego (ou seria romano?) que uma vez disse que quando conseguia algum dinheiro gastava logo em livros, e se sobrasse algo, comprava roupas e comida. E assim o cara se sentia justificado pela cultura erudita, com suas escolhas pessoais, que quase ninguém entendia e que a maioria condenava.

Em casa, pegou um copo de mate, a maçã solitária de Isaac Newton na geladeira quase tão vazia quanto seu estômago, e foi se refestelar no sofá, para se deliciar com seus mimos literários. Apesar da fome não aplacada, o cara estava feliz por ter avistado um oásis literário para alimentar sua alma antes de chegar ao Esquimó, que iria alimentar seu corpo. Essa troca o enchia de orgulho, pois se alimentar de palavras, idéias e inspirações de seus amados mestres era mais importante para ele do que encher o bucho e ficar de papo pro ar pensando bobagens sem sentido sobre a vida.

E as palavras e frases o saciaram plenamente. Antes de dormir o cara ainda precisou tomar um sal de frutas para digerir melhor os pensamentos políticos de Burgess e alguns contos mais ácidos de Sam Shepard. Seu último pensamento antes de embarcar para a Terra dos Sonhos foi que é fundamental cuidar da alimentação, seja do corpo, da mente ou da alma. Afinal, a gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e artzzzzzzzzzzzzzzzzzzz...