quinta-feira, 9 de agosto de 2007

O CARA E A TENTAÇÃO LITERÁRIA

Sob o escaldante mormaço do inverno carioca, com pouco mais de dez reais no bolso e uma fome etíope, o cara vagava pelos belos e sujos labirintos do Centro da Cidade. Andava no piloto automático enquanto pensava nas opções gastronômicas e com preço mais em conta que o Centro lhe oferecia. Definitivamente queria distância de sanduíches, salgadinhos gordurosos, fast food. Queria uma refeição digna e substanciosa para se comer de garfo e faca. O Esquimó, na travessa do Ouvidor, reduto dos executivos apressados de escalões menores e dos apreciadores de uma comida barata, farta e honesta, parecia ser a melhor opção. O tempo se encarregara de lapidar as pinturas de esquimós e caçada as focas nas paredes do restaurante, enquanto os velhos e barulhentos ventiladores não davam conta do mormaço e nunca honrariam o nome do simpático restaurante. Mas isso de nada importava. A diplomática e divertida atenção do garçom Alfredo, os copos extras de laranjada e o clima de fartura eram as marcas registradas do Esquimó. E o importante era se abastecer e apagar aquele vácuo que crescia em seu ventre. Depois iria caminhando feliz até em casa, para "fazer o quilo", como diria Adoniran.

Mas acontece que ao virar o leme na direção da avenida Rio Branco, caminho certo para o Esquimó, o cara se deparou com a visão de uma nova livraria – na verdade um sebo de livros. Era novo, bem arrumado, e que parecia chamar-lhe sutilmente para entrar. Todas as livrarias e lojas de discos sempre o seduziam, menos como uma femme fatalle e mais como uma cobra naja hipnotizando a vítima incauta, que se aventura em seu território. E ele, em transe, não resistiu aos chamados mudos do estabelecimento e entrou.

Em cada prateleira, uma surpresa. Sem muito se esforçar, remexer, se abaixar ou se esticar, o cara logo encontrou "O Caso dos Dez Negrinhos", de Agatha Christie, que ele considerava o romance policial perfeito e que tinha emprestado para alguém que – quase em todos os casos de empréstimo – nunca o devolveu. Na prateleira de grandes autores internacionais, Anthony Burgess acenou para ele com o sumido "1985", que o cara perdera mais de uma década antes, num passeio de barca a Niterói. Sam Shepard também se mostrou todo solícito, com seu livro de poesia em prosa "Crônicas de Motel", que o cara procurava para presentear algum amigo que fosse fã de Wim Wenders, que tirou seu "Paris, Texas" de lá. E para completar, Drummond e Clarice Lispector lhes caíram no colo, como rosas de aprendiz, prazeres inesperados, flor, telefone, moça da Ucrânia, enigmática e adorável, já criando laços de família com o incauto andarilho do Centro carioca. Resultado: o cara comprou tudo, gastou quase tudo. Mas estava feliz como uma criança com brinquedo novo, como um velho que tem uma epifania e descobre assombrado o sentido da vida num detalhe aparentemente insignificante que mais ninguém percebe.

Saiu do sebo agradecido até seu estômago reclamar de seus impulsos de consumo literário. O que fazer com tantos livros amados e um rombo no estômago? O cara deixou o Esquimó para outra ocasião e foi caminhando para casa, 40 minutos consumindo as solas dos sapatos de couro, agarrando seu pacote de livros como um valioso tesouro de Estado. Lembrou-se de um velho filósofo grego (ou seria romano?) que uma vez disse que quando conseguia algum dinheiro gastava logo em livros, e se sobrasse algo, comprava roupas e comida. E assim o cara se sentia justificado pela cultura erudita, com suas escolhas pessoais, que quase ninguém entendia e que a maioria condenava.

Em casa, pegou um copo de mate, a maçã solitária de Isaac Newton na geladeira quase tão vazia quanto seu estômago, e foi se refestelar no sofá, para se deliciar com seus mimos literários. Apesar da fome não aplacada, o cara estava feliz por ter avistado um oásis literário para alimentar sua alma antes de chegar ao Esquimó, que iria alimentar seu corpo. Essa troca o enchia de orgulho, pois se alimentar de palavras, idéias e inspirações de seus amados mestres era mais importante para ele do que encher o bucho e ficar de papo pro ar pensando bobagens sem sentido sobre a vida.

E as palavras e frases o saciaram plenamente. Antes de dormir o cara ainda precisou tomar um sal de frutas para digerir melhor os pensamentos políticos de Burgess e alguns contos mais ácidos de Sam Shepard. Seu último pensamento antes de embarcar para a Terra dos Sonhos foi que é fundamental cuidar da alimentação, seja do corpo, da mente ou da alma. Afinal, a gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e artzzzzzzzzzzzzzzzzzzz...

 

8 comentários:

  1. Que texto excelente, queridão. Já fiz isso, escolher entre alimento pra alma ou pro corpo. Meu corpo se adaptou a receber menos, eu acho (rsrs).
    Amo Anthony Burgess e me encanta que alguém mais conheça seus livros - isso é raro.

    Adoro o nome Esquimó pro bandejão no meio do calor de inverno. Grande Ozlo!!!!!!!!!!!!


    Pessoa talentosa, você é.

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  2. Otimo texto OZ!!!!

    Adorei ele todo, mas principalmente essa parte:

    "é fundamental cuidar da alimentação, seja do corpo, da mente ou da alma"!!!!!!

    Abracos da terra fria que agora esta quente :)

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  3. Obrigado pelas suas palavras, Mana!

    Quanto a Anthony Burgess, leio sua obra desde os meus 14 anos de idade (e lá se vão quase três décadas!...). Um dos mais brilhantes escritores que já li.

    O Esquimó é "o que há"! Recomendo! ;-)

    Beijo grande!

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  4. Valeu, mr. Anderson!

    E acho que todo o planeta está mais quente do que devia...

    Abração!

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  5. eu já fiz isso também!!! hahaha
    ficava que nem boba depois assinando meu nominho na capa :-P
    muito bom o texto!
    =)

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  6. Oi, Erica!

    Obrigado pelo elogio, menina!

    Sabe que eu nunca tive o hábito de assinar meus livros? Deveria... isso teria evitado muitos livros extraviados, emprestados a pessoas que nunca se preocuparam em devolver...

    Beijos!

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  7. "Nem só de pão vive o Homem."
    Muito bem! O Cara está cada vez mais gostoso de ser lido.
    bjos

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