domingo, 31 de agosto de 2008

Conto (14): "O JORNAL E SUAS METAMORFOSES", de Julio Cortázar

O Jornal e Suas Metamorfoses

Um senhor pega um bonde depois de comprar o jornal e pô-lo debaixo do braço. Meia hora depois, desce com o mesmo jornal debaixo do mesmo braço.

Mas já não é o mesmo jornal, agora é um monte de folhas impressas que o senhor abandona num banco de praça.

Mal fica sozinho na praça, o monte de folhas impressas se transforma outra vez em jornal, até que um rapaz o descobre, o lê, e o deixa transformado num monte de folhas impressas.

Mal fica sozinho no banco, o monte de folhas impressas se transforma outra vez em jornal, até que uma velha o encontra, o lê e o deixa transformado num monte de folhas impressas. Depois, leva-o para casa e no caminho aproveita-o para embrulhar um molho de acelga, que é para o que servem os jornais depois dessas excitantes metamorfoses.

 

(Julio Cortázar, no sortimento Matéria Plástica do livro "Histórias de Cronópios e de Famas". Tradução de Glória Rodríguez)

 

Conto (13): "HISTÓRIA VERÍDICA", de Julio Cortázar

História Verídica

Um senhor deixa cair no chão os óculos, que fazem um barulho terrível ao bater nos ladrilhos. O senhor se abaixa aflitíssimo porque as lentes dos óculos custam muito caro, mas descobre assombrado que por milagre elas não se quebraram.

Então, esse senhor sente-se profundamente grato, e compreende que o acontecimento vale por uma advertência amigável, de maneira que se dirige a uma ótica e compra logo um estojo de couro acolchoado, comproteção dupla, como precaução. Uma hora depois deixa cair o estojo e ao abaixar-se sem maior precaução verifica que os óculos viraram farelo. Esse senhor leva tempo para compreender que os desígnios da Providência são insondáveis e que na realidade o milagre aconteceu agora.

 

(Julio Cortázar, no sortimento Matéria Plástica do livro "Histórias de Cronópios e de Famas". Tradução de Glória Rodríguez)

 

domingo, 17 de agosto de 2008

Conto (12): "O ANIVERSÁRIO DA VOVÓ", de Fredric Brown

Fredric Brown (1906-1972) nasceu em Cincinnati e escreveu cerca de trezentos contos e vinte e nove romances, a maioria nos gêneros de mistério e ficção científica. Seu conto "Arena" serviu de base para o episódio da série televisiva clássica "Jornada nas Estrelas" de mesmo nome. O conto típico de Fredric Brown tem duas características principais: é curto, e aplica no leitor uma surra brutal."O Aniversário da Vovó" ("Granny’s Birthday", 1960) talvez seja um de seus contos mais breves; mas é indubitavelmente um dos mais devastadores.

Já publiquei aqui na VALISE DE CRONÓPIO o conto mais famoso desse fantástico escritor, "Resposta". Clique para ler essa pequena obra-prima. http://ozlopesjr.multiply.com/journal/item/43

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Os Halperins eram uma família muito unida. Wade Smith, um dos únicos presentes que não pertencia à família, invejava-os por isso, de vez que ele próprio não tinha família – mas a inveja temperava-se com uma doçura cálida, por obra do copo na mão dele.

Era a festa de aniversário da Vovó Halperin, a festa dos oitenta anos dela; todos os presentes, exceto Smith e outro convidado, eram Halperins ou levavam o nome Halperin. Vovó tinha três irmãos e uma irmã. Todos estavam lá; os três homens eram casados e tinham levado as esposas. Com isto, havia oito Halperins, incluindo Vovó. Havia ainda quatro membros da segunda geração, netos, um deles com a respectiva esposa, elevando para treze o número de Halperins. Smith contou: treze Halperins. Com ele próprio e o outro não-Halperin, um homem chamado Cross, eram quinze adultos presentes. E estiveram também presentes, mais cedo, outros três Halperins, bisnetos, mas foram levados para dormir logo no começo da noite, em horas correspondentes à idade de cada um.

E ele gostava deles todos, pensou Smith, com candura, embora, depois que as crianças foram retiradas, o álcool estivesse fluindo com abundância e a festa se tornasse um tanto barulhenta demais, para seu gosto. Todos bebiam; mesmo Vovó, sentada em uma cadeira que mais parecia um trono, tinha à mão um cálice de xerez, o terceiro da noite.

Era uma velhinha maravilhosamente doce e viva, pensou Smith. Realmente uma matriarca; como era doce! admirou Smith. Dirigia a família com uma vara de ferro em luva de veludo – ele já estava suficientemente embriagado para confundir as metáforas.

Smith estava lá a convite de Bill Halperin, um dos filçhos de Vovó; era procurador e amigo de Bill. O outro forasteiro, um certo Gene ou Jean Cross, parecia ser amigo de vários netos de Vovó.

No outro lado da sala, ele via Cross em conversa com Hank Halperin e percebeu que alguma coisa dita entre eles levara subitamente a uma discussão irada e gritada. Smith esperou que o assunto não trouxesse complicações; a festa estava agradável demais para ser interrompida por uma briga, ou mesmo altercação.

De repente,porém, Hank Halperin deu um soco no queixo de Cross e este caiu de costas. A cabeça dele bateu na quina da lareira; ouviu-se um baque surdo e ele ficou prostrado no chão. Hank correu até ele, ajoelhou-se e apalpou-o. Quando olhou em volta estava pálido, e logo levantava-se.

– Está morto – disse, desalentado. – Por Deus, eu não quis matá-lo! Mas ele disse...

Vovó já não sorria mais. A voz dela saiu resoluta, conquanto lastimosa:

– Ele tentou bater em você primeiro, Henry. Eu vi. Todos vimos isto, não foi?

Com a última frase, ela voltara-se para Smith, o forasteiro sobrevivente. Smith mexeu-se, contrafeito.

– Eu... eu não vi como a coisa começou, Sra. Halperin.

– Viu sim – interrompeu ela. – O senhor estava olhando bem na direção deles, Sr. Smith.

Antes que Wade Smith pudesse responder, Hank Halperin estava dizendo:

– Vovó, eu sinto muito, mas mesmo isto não resolve o assunto. Estamos numa dificuldade realmente grande. Lembre-se de que eu lutei durante sete anos como boxeador profissional. E os punhos de um boxeador, ou ex-boxeador, são considerados armas letais, do ponto de vista legal. Isto transforma a coisa em assassinato em segundo grau, mesmo se ele tivesse dado o primeiro soco. O senhor sabe disso, já que é advogado. E com os outros problemas que já tive, a polícia vai pegar minha ficha e jogar em cima de mim.

– Infelizmente acho que o senhor está certo – disse Smith, hesitante. – Mas não seria melhor que alguém chamasse um médico, ou a polícia, ou ambos?

– Num instante, Smith – disse Bill Halperin, o amigo de Smith. – Mas primeiro temos que acertar a coisa entre nós. Foi legítima defesa, não foi?

– Eu... Eu acho... Eu não sei o que...

– Esperem, ouçam todos – disse Vovó, com a voz dura e afiada. – Mesmo se foi legítima defesa, Henry estará em dificuldade. E vocês acham que podemos confiar nesse Smith quando ele estiver fora daqui, num tribunal?

Bill Halperin disse:

– Mas Vovó, temos que...

– Deixe de bobagem, William. Eu vi o que aconteceu. Todos vimos. Eles brigaram, Cross e Smith, e um matou o outro. Cross matou Smith e depois, tonto com os golpes que ele próprio recebera, caiu e bateu com a cabeça na pedra. Não vamos deixar que Henry vá para a cadeia, não é mesmo, meus filhos? Não um Halperin, não um de nós. Henry, machuque um pouco esse cadáver, para que ele pareça ter saído de uma briga, e não de um simples soco. E vocês outros...

Os Halperins machos, com exceção de Henry, fecharam um círculo em torno de Smith; as mulheres, com exceção de Vovó, vinham logo atrás. E o círculo estreitou-se.

A última coisa que Smith viu claramente foi Vovó em sua cadeira mais parecida com um trono, os olhos brilhantes de excitação e determinação. E a última coisa que Smith ouviu, no silêncio subitamente formado na sala, foi o som leve do risinho de Vovó. Depois veio o primeiro soco.

 

domingo, 10 de agosto de 2008

O QUE É UM CRONÓPIO?

Muita gente me pergunta o que significa "cronópio". Esta é uma pergunta para a qual não existe uma resposta objetiva. Os cronópios – assim como os famas e as esperanças – nasceram da fértil imaginação do escritor argentino Julio Cortázar, no livro "Histórias de Cronópios e de Famas". O livro reúne pequenos contos de realismo fantástico, surrealismo, absurdo, com muita poesia, ironia e humor, divididos em "Manual de Instruções", "Matéria Plástica", Estranhas Ocupações" (com a apresentação da insólita, divertida e fascinante família da Rua Humboldt) e naturalmente as tais "Histórias de Cronópios e de Famas", onde temos a chance de conhecer melhor esses estranhos seres que têm muito a ver com os seres humanos.

Alguns anos mais tarde Cortázar lançou o livro de ensaios "Valise de Cronópio" (que também dá nome a este site pessoal), com textos sobre o romance, o conto, o poema, Louis Armstrong, o surrealismo, o fantástico, Carlos Gardel, o erotismo na ficção, Thelonius Monk, entre outros sortimentos da valise.

Para tentar descobrir o que são os cronópios, os famas e as esperanças, a tradutora da versão brasileira de "Histórias de Cronópios e de Famas", Gloria Rodríguez, deu algumas pistas preciosas na introdução do livro:

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"‘Histórias de Cronópios e de Famas’, o sexto livro de Julio Cortázar, foi escrito em Roma e em Paris, no período de 1952 a 1959, e publicado em 1962, um ano antes de ‘O Jogo de Amarelinha’, A Encyclopédie Universalis (Paris, 1970), que dedica mais de uma página a Cortázar, dando assim uma medida do prestígio internacional do escritor argentino, qualifica o livro como ‘desconcertante’. E acrescenta: ‘Sobre um fundo de caricatura da vida em Buenos Aires, é uma seleção variada, insólita, de notas, de fantasias e de improvisações. Um humor melancólico, irônico ou violento, cheio de uma curiosa poesia, ali se desdobra num estilo carregado de imagens intensas e de achados verbais e psicológicos’.

O título é o mesmo no original em espanhol. A chave de que se necessita para penetrá-los é universal. Que são cronópios? Que são famas? O leitor irá descobrindo por si mesmo, à medida que entra no mundo fantástico desvendado pelo autor; e nisto achará um prazer que se renova a cada instante. Mas não será nenhum desmancha-prazer adiantar alguns dados rápidos sobre as origens e o temperamento dessas fascinantes criaturas.

O próprio autor, uma noite em Paris, num concerto, assim descreveu os seus personagens: ‘Eram tão estranhos que eu não conseguia vê-los claramente, uma espécie de micróbios flutuando no ar, uns glóbulos verdes que pouco a pouco iam tomando caraterísticas humanas’. A forçados cronópios é a poesia. Eles cantam, como as cigarras, indiferentes ao prosaísmo do quotidiano; e quando cantam, esquecem tudo, são atropelados, perdem o que levam nos bolsos e até a conta dos dias.

Os famas são seres acomodados, prudentes, dados ao cálculo, e embalsamam suas recordações. Se a família vai se hospedar num hotel, mandam um na frente para verificar os preços e a cor dos lençóis. Os famas sabem tudo da vida prática, mas os cronópios sentem por eles uma compaixão infinita.

Além dos cronópios e famas, há também as esperanças. ‘As esperanças, sedentárias – escreve Cortázar –, deixam-se viajar pelas coisas e pelos homens, e são como as estátuas, que é preciso ir vê-las, porque elas não vêm até nós’."

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A minha interpretação, bem simples e direta, é que os cronópios são os artistas, os poetas, os sonhadores, criaturas com sensibilidade à flor da pele, que não ligam para os padrões, modismos e regras da sociedade, que sentem e enxergam além do óbvio e que não conseguem viver sem criar e fazer arte. Os famas são pessoas racionais, sensatas, cerebrais, os cientistas, matemáticos, meticulosos em tudo o que fazem, que só acreditam no que a ciência e o racionalismo podem explicar, mas que apesar de tudo sabem apreciar a arte e a poesia – apesar de em geral não entendê-la muito bem. E finalmente as esperanças, calculistas, mesquinhas, egoístas; os políticos, os militares, os ultra-direitistas, que adoram a censura, o poder, o controle da vida alheia, e que detestam ser contrariados e desobedecidos. Em que categoria você se enquadra?

Em tempo, li "Histórias de Cronópios e de Famas" na adolescência e até hoje ele é meu livro de cabeceira, o livro mais importante da minha vida.