domingo, 24 de junho de 2007

O CARA E A AVENTURA NA CHAPADA

O cara era louco para conhecer a Chapada Diamantina e tinha terminado um trabalho de uma semana em Ilhéus. Seu bolso lhe disse que ele estava liberado para passar dois dias em Lençóis. O cara desembarcou do ônibus se sentindo um personagem misto de Guimarães Rosa e Sérgio Leone. Com um chapéu de feltro marrom enfiado na cabeça e a barra da calça comendo a poeira quente das ruas, aquele forasteiro não ansiava por um duelo ao sol e sim por conhecer o máximo das belezas naturais da região no mínimo de tempo possível.

Em Salvador conseguiu o endereço de uma simpática pousada na beira do rio de Lençóis e logo estava tirando a mochila dos ombros e espichando as costas numa cama rústica porém confortável. O lugar até podia ser simples mas a vista que o cara tinha da janela do quarto era deslumbrante! Entre árvores de pintura, debruçado sobre a sonoridade repousante do rio, os grande morros ao longe, a luz do dia entrava ali de maneira suave, como se pedisse licença.

A água do banho mal tinha evaporado do seu corpo e o cara já estava de novo nas ruas, procurando uma agência de turismo que alimentasse sua fome de aventuras. A placa numa porta o atraiu, ele entrou. As velhas tábuas de madeira rangeram sob seus pés, o que fez com que os olhos do agente se desviassem dos cheques e faturas dos cartões de crédito e fossem pousar no jovial forasteiro de cabelos molhados. "Mas hoje é segunda-feira, dia morto pro turismo! O pessoal foi todo embora ontem!" O cara acabara de perceber que os dois dias de folga que seu bolso lhe dera eram segunda e terça, dois dias tão agitados para o turismo de Lençóis quanto é um domingo de tarde no Centro do Rio de Janeiro. Mesmo assim ele conseguiu um acordo com o agente. "Eu preciso resolver uns negócios em Mucugê, tenho que passar pelo Morro do Pai Inácio. Te deixo ali e na volta, umas duas horas depois, te pego, ok?" Era o melhor que ele podia conseguir, ainda mais levando-se em conta de que ia sair por menos da metade do preço normal.

Uma hora e meia depois, com um modesto porém honesto café da manhã no estômago, a mochila nas costas e seu estimado chapéu de feltro na cabeça, o cara já estava sacolejando na velha veraneio, em direção ao coração da Chapada Diamantina. O agente, apesar de simpático, falava pouco e se limitava a responder às vorazes curiosidades geográficas e históricas do cara sobre a região. Já sabia ande ficava o Morrão, a Cachoeira da Fumaça, o Poço e a Cachoeira do Diabo, o rio Mucugezinho, e o famoso Poço Encantado, onde pretendia ir no dia seguinte com um grupo de turistas estrangeiros desgarrados como ele.

De repente, logo após uma curva, como Richard Dreyfuss avistando a Torre do Diabo pela primeira vez em "Contatos Imediatos do Terceiro Grau", o cara tem a primeira visão do Morro do Pai Inácio, o ponto mais alto e símbolo da Chapada Diamantina. É uma visão maravilhosa, incrível. Finalmente ele estava lá, no coração da parte mais bela do sertão baiano. A veraneio passou por uma pousada solitária no meio do nada, fez uma curva fechada, deu a volta no morro e começou a subir. O agente explicou ao cara que ia deixá-lo no pé da trilha por onde seguem os turistas e monitores, que era uma subida simples, que não havia risco. Antes mesmo da poeira do carro baixar, o cara já ajeitava a mochila e ia seguindo as indicações do agente por onde seguir até chegar no topo do Pai Inácio. Cerca de duas horas depois ele seria resgatado na frente do bar da pousada, em frente ao morro, como combinado. Adiós amigo e lá foi ele barranco acima.

Com a endorfina e a adrenalina fluindo nas veias, o cara galgou a trilha de pedregulhos do morro como quem sobre a escada de um prédio, só que com um entusiasmo descomunal. Ele sabia que por mais simples e seguro fosse aquele caminho, nenhum turista se arriscava por ali sozinho, apenas com o auxílio de monitores experientes. Isso o deixava orgulhoso, feliz, intrépido. E lá estava ele, um Indiana Jones tropical improvisado, com o chapéu do herói, totalmente impróprio para aquela situação, fazendo sua cabeça suar em bicas. Rindo sozinho, ele tentava abarcar todos os aspectos da experiência. O Morro do Camelo às suas costas, a visão poderosa da região dos morros em volta, a configuração do próprio Morro do Pai Inácio, o lindo céu azul cheio de nuvens brancas sobre seu chapéu de aventureiro de cinema.

Quase no topo o cara pisou em duas pedras em falso e bambeou. Olhou para baixo e notou que entre as pedras haviam duas cobras, pequenas e coloridas, alternando as cores preta, vermelha e branca, em anéis. Abrindo uma gaveta em seu cérebro, ele consultou um livro de biologia e a velha enciclopédia "Os Bichos", que seu pai colecionou nas bancas para ele, e se lembrou que aquela espécie poderia ser a cobra-coral ou a falsa coral. A segunda, totalmente inofensiva, mas a primeira inexoravelmente letal. Ainda mais num lugar ermo como aquele, longe de qualquer fonte de soro anti-ofídico, seu destino seria óbvio e agonizante. Sem pensar muito, ele preferiu não perguntar aos répteis a qual espécie eles pertenciam e num raio, pulou para o topo do morro.

Lá estava ele, Zeus no Olimpo, ou melhor, o cara no ponto mais alto do Morro do Pai Inácio, dominando a sua tão almejada Chapada Diamantina. Esquadrinhando cada centímetro da vegetação do topo, vislumbrando a Chapada em 360º, programando a câmera pra fotografá-lo no automático, o "Dr. Jones" tupiniquim em toda a sua glória solitária na aorta do coração da Bahia, o cara ficou ali no seu trono natural por duas horas, aproveitando cada segundo, ao som das trilhas sonoras que John Williams compôs para o arqueólogo de Steven Spielberg, feliz como uma criança de seis anos num parque da Disney.

Com medo de perder a espaçonave velha e combalida do agente que o levaria de volta à civilização, o cara desceu o Morro do Pai Inácio, e ao sopé dele ficou esperado o anacrônico bólido bebendo uma água mineral no bar da pousada ali em frente. Uma bela moça, morena-jambo e com mais curvas que as estradas locais, veio lhe atender com um sorriso luminoso. Enquanto a veraneio do agente não dava sinais de vida, e na falta de clientes, ela sentou ao lado do cara na soleira do bar para um dedo de prosa. "Que cidadezinha é aquela ao longe? Parece tão pequena e tão isolada de tudo!", o curioso queria saber. "Ah, ali é São João Não-Sei-das-Quantas", a terra do lobisomem.", disse a menina, com a maior das naturalidades. "Lobisomem?!?!" E ela contou que naquele lugar além do Morro do Camelo, que ao longe mais parecia uma maquete, havia um velho, o homem mais velho do vilarejo, de quem todos gostavam, que presenteava as crianças com criativos brinquedos de madeira e juta, e que em toda noite de lua cheia virava lobisomem. O sujeito beirava os 90 anos e carregava essa maldição há décadas. Como a população do lugar já sabia disso, mantinha as portas e janelas trancadas uma vez por mês e não deixava o monstro entrar em suas casas nem o preconceito contra o querido velho entrar em seus corações. A besta-fera nonagenária se alimentava de rezes, porcos e animais selvagens da chapada, evitando fazer mal a seus conterrâneos. E assim que a lua cheia ia dormir e o sol batia ponto de manhã a vida continuava normalmente.

O cara ouviu aquilo tudo espantado, com a nítida sinceridade da moça, mas deixou escapar um sorrisinho de escárnio e dúvida entre um gole e outro da segunda garrafa d’água. O pai da garçonete, dono da pousada e do bar, veio se juntar a eles e foi logo perguntando à menina se já tinha contado ao forasteiro a história do lobisomem da chapada. O cara engasgou com as bolhas da água com gás e começou a dar mais crédito à narrativa da moça. Ele que tanto adorava filmes como "Grito de Horror" e "Um Lobisomem Americano em Londres" poderia mesmo crer que um monstro sobrenatural daqueles vivia ali pertinho de onde ele reinou por duas horas?

A conversa e as perguntas seguiam adiante e de arqueólogo de araque o cara se transformou em pesquisador do folclore e repórter inquisitivo. Na parede do restaurante, o ponteiro das horas do velho relógio da Brahma indicava que os negócios do agente na cidade vizinha tinham ido muito além do previsto. Pouco antes do crepúsculo se anunciar nos céus da chapada e quando o cara estava praticamente convencido de que ele e os licantropos coexistiam no mesmo mundo, no mesmo país, e falavam a mesma língua, a veraneio freou bruscamente diante do trio, levantando poeira e embaralhando as crenças do turista. "Perdoe a demora, seu moço, mas é que eu tive uns problemas lá em Mucugê que não dava pra deixar pra outro dia."

Pagou as três águas, despediu-se da bela moça e do pai dela, entrou na veraneio largando a mochila no banco de trás e voltou para Lençóis, ignorando as belas visões à sua volta. Não parava de pensar naquela história e se lamentava de não ter a chance de poder conversar cara a cara com o lobisomem da Chapada Diamantina. Será que bala de prata resolvia mesmo? Isso só o velho ancião poderia lhe esclarecer.

 

11 comentários:

  1. muito boas suas estórias, Oz. Estara nascendo mais um escritor no Multiply?

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  2. Quem sabe, Cesar?

    Sempre fui crítico, roteirista, redator, criador publicitário... sempre trabalhei escrevendo... mas me aventurar pela literatura mesmo, acho que essa é a primeira tentativa séria. À princípio o objetivo destes meus textos é apenas terapêutico: me fazer bem, melhorar meu humor, aumentar minha auto-estima. E te garanto que está dando MUITO CERTO! :-)

    Me reaproximar dos amigos e visitantes do Multiply também é um dos objetivos e vejo que estou conseguindo. Enquanto isso vou buscando um estilo literário, vou descobrindo que tenho uma veia cômica que desconhecia (fica perto da jugular... :-P) e vou remexendo as gavetas da memória e da imaginação, fazendo uma bagunça danada! Uma bagunça das boas, pra dizer a verdade! ;--))

    Se as aventuras do cara estão agradando aos amigos, fico muito feliz com isso, muito feliz MESMO!!! Até porque ainda tem muita coisa por vir de onde vieram essas histórias!... ;-)

    Grande abraço!

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  3. Eu estou adorando e quero depois saber "ao vivo" essa história também!
    As histórias são ótimas e a maneira com que você as descreve faz com que fiquem deliciosas de ler!
    Você está no caminho certo!
    Tá show de bola!

    Beijos da já admiradora,

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  4. Já havia passado por aqui e agora que voltei pude apreciar com calma tua história.
    Bravos! Adorei! E quero mais noticias do lobisomem hein?!
    :))

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  5. Só perguntando pro cara, Renata. Eu não sei nadica de nada, a não ser o que ele me deixa saber pra colocar aqui nos textos. ;-)

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  6. Puxa, fico até emocionado com estas palavras de incentivo, Renata!!!!

    Obrigadíssimo, de coração!!!!

    Estou tentando mesmo descobrir meu estilo literário, a cada texto que faço. E o cara está me ajudando muito nessa façanha!

    Com toda certeza - e gratidão! - os amigos também estão!

    Um beijo grande!

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  7. Lua, nem o cara ficou sabendo mais nada do lobisomem. Deve ter sido mesmo frustrante perder uma entrevista dessas, tão perto de acontecer!

    E seja sempre bem vinda aqui! Eu - e o cara - agradecemos! ;-)

    Beijão!!!

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  8. Que legal!!! Tô realmente fora do Multi por causa de um projeto, mas prometo botar em dia as aventuras do CARA.

    Bom te ver assim querido....Assim que deve ser...

    Bjs em você e no CARA

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  9. Vou esperar teus comentários nas outras crônicas do cara, Sílvia!

    Obrigado e beijão!

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  10. Personalized Myspace Comments In Flash

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  11. Oi, Sônia, bom domingo e linda semana pra você também.

    Mas eu gostaria de ler teus comentários sobre minhas crônicas do cara.

    Aliás publiquei mais uma aqui no Multiply há uma hora - O CARA E A GROSELHA NATURAL.

    Beijos.

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