sábado, 30 de junho de 2007

O CARA E A VOLTA PARA CASA

O vôo de Salvador para o Rio de Janeiro estava marcado para às 18 horas. O ônibus de Lençóis para a capital partia ao meio-dia e a viagem durava cerca de cinco horas. Como era o único transporte público local – trocando em miúdos, sua única chance de chegar a Salvador –, o cara nem deu ouvidos aos comentários dos colegas de viagem que o acompanharam até o Poço Encantado, no dia anterior. "Tu é louco, cara! Pegar um ônibus com o tempo certo pra chegar no aeroporto... ainda mais com essas estradas! Tu vai acabar perdendo o avião!", e ele nem ligava.

Às onze horas o cara analisava o cardápio minuciosamente, tentando escolher algo tipicamente baiano e ao mesmo tempo familiar para comer. Resumindo, o carioca queria algo que não existia: um híbrido alimentar. Sentado num canto sombreado do restaurante, ele admirava a luz do sol entrando no recinto e iluminando apenas alguns móveis, paredes, plantas, a poeira nordestina dançando no ar o fascinava. Cansado dos dois dias que mais pareceram duas semanas, o cara decidiu por um filé de peixe ao molho de camarão, com purê de batatas e uma saladinha verde, tudo "à moda da casa". Peixe, purê e salada eram leves e saudáveis, e deveriam servir para agüentar cinco horas dentro de um ônibus calorento. O problema é que ele desconhecia totalmente as intenções dos camarões do molho e o significado da expressão "à moda da casa" naquele restaurante.

Barriga cheia, passagem de busão na mão, mochila nas costas e o indefectível chapéu de feltro na cabeça, o cara embarcou naquele velho ônibus para uma viagem inesquecível até Salvador, cidade de nome bastante sugestivo naquele caso. Acomodou-se na poltrona levemente reclinável, atochou os fones no ouvido, ligou o discman, escolheu Luiz Gonzaga para acompanhar-lhe na viagem e relaxou. "Vai, boiadeiro, que a tarde já vem... leva o teu gado e vai pensando no teu bem..."

Não demorou muito para o ônibus começar a se mexer e pegar a estrada em direção ao litoral. O cara estava tão chapado com as aventuras na chapada e com o farto almoço que parecia organicamente integrado àquela poltrona velha. "Ai, ai, que bom, que bom que é, uma estrada e a lua branca no sertão de Canindé..." e o sono chegando. E com cinco horas pela frente, não custou pro Gonzagão convencer o cara a dar uma passeada pela Terra dos Sonhos. Lá ele dançou no Forró de Mané Vito, agarrando a moça de cintura fina, também a que só qué, só pensa em namorá, deu um giro na Feira de Caruaru, aprendeu o ABC do sertão, singrou pelo riacho do navio no Rio São Francisco até bater no meio do mar...

E enquanto sonhava com o sertão do velho Lua, o cara acordou com os solavancos do ônibus sobre a estrada federal mais esburacada do planeta. Aquela via, apesar de responsabilidade da Federação, nunca tinha sido apresentada ao asfalto. Era terra pura com mais buracos que um queijo suíço. E um dos passageiros próximos avisou: "Ih, essa buraqueira vai até quase Salvador! É um inferno!"

Se fosse só isso o cara continuaria passeando com o Luiz Gonzaga, mesmo acordado. Porém uma rebelião silenciosa (a do pior tipo) acontecia em seu estômago e intestino. Os camarões do molho do almoço se juntaram ao peixe que nadava contra as águas do riacho do navio e armaram um motim. Ouvindo Lua cantar "tem carça de alvorada que é pra matuto não andá nu", o cara arregalou os olhos e temeu por sua cueca limpa. Largou a mochila e o discman e tentando se equilibrar entre as velhas poltronas, alcançou o minúsculo banheiro do ônibus e se trancou lá dentro, antes que seu esfíncter destrancasse de vez. Rapidamente, como se sua vida dependesse disso, arriou as calças de pano e a cueca samba-canção e nem pensou em forrar a tábua com papel toalha. A comporta da hidrelétrica se abriu e o almoço "saudável" do restaurante de Lençóis foi parar na privada metálica do veículo. Os camarões revoltosos saíam como guerreiros ensandecidos, liderados pelo peixe do riacho do navio, tudo em estado líquido. O cara se segurava nas paredes, o suor lhe cobria a testa, enquanto a buraqueira da estrada de terra se encarregou de transformar uma viagem de ônibus numa tempestade em alto mar. Quando os duros amortecedores traseiros se encontravam com a estrada, parecia que o cara estava montado num touro de rodeio enfurecido, porém com uma cobertura indesejável. Desesperado, o cara abriu toda a janela, pôs a cabeça pra fora e não conteve o grito óbvio: "QUE MEEEEEEEERDA!"

Seria cômico, se não fosse trágico. Mas no fim, entre mortos e feridos, salvaram-se todos. Principalmente as calças e a cueca do cara, que milagrosamente escaparam ilesas à catástrofe gástrica. Ele jogou uma água no rosto cansado, molhou os cabelos para espantar o calor e saiu do banheiro. Foi-se sentar em seu lugar, ainda combalido com a revolta dos camarões baianos. Por precaução, pulou a faixa "Piriri" do CD, apesar do Gonzagão só falar "como é bom São João na roça."

E o rei do baião confessava: "Minha vida é andar por esse país, pra ver se um dia descanso feliz, guardando recordações das terras onde passei, andando pelos sertões e dos amigos que lá deixei", e a viagem seguia tranqüila e feliz, após o desarranjo inesperado.

Ao notar que o sol era cada vez mais atraído pelo horizonte nordestino, o cara se apercebeu de que estava no limite de tempo para chegar no aeroporto. Começou a ficar preocupado, principalmente porque há anos eles não usava relógio. Levantou-se e foi galgando o corredor do ônibus até chegar perto do motorista. "Moço, que horas o senhor acha que a gente chega na rodoviária?", "Se avexe não, moço, umas cinco horas no máximo a gente está lá!", acalmou o piloto. O cara voltou um pouco mais tranqüilo para o seu lugar.

Aproximando-se de Salvador, o ônibus se encaixou no fim de um engarrafamento imenso e preguiçoso. A velocidade passou de 70 para 15 km por hora, enquanto os batimentos cardíacos do cara iam de 80 para 140 por minuto. Ele olhava o pescoço do motorista e ainda cogitava se valia a pena apertá-lo para que o veículo disparasse até seu destino final. Mas como desesperar não adiantava nada, o bólido enfim alcançou a rodoviária em passos de cágado.

Apesar de tudo, o relógio público marcava 17:15hs. Era hora do cara virar super-herói. Pulou no primeiro táxi vazio que encontrou e anunciou, como num filme de ação, "aeroporto, o mais rápido que você puder!" Pelo visto o taxista tinha visto o mesmo filme, pois nem precisou de explicações para pisar fundo no acelerador. Feliz como se tivesse esperado a vida inteira por um passageiro apressado como aquele, o motorista explicou o trajeto ao cara, dizendo que ia cortar caminho por aqui e acolá, e que assim que passassem por um trevo coberto de pinheirinhos, como se fosse um túnel natural, eles estariam muito próximos do aeroporto. O cara, de estômago vazio, engolia em seco e só pensava se daria tempo de fazer o check-in e pegar seu avião até às seis. "Ô, carioca, te aquieta que comigo tu chega lá num átimo!", disse o baiano arretado.

O túnel de pinheirinhos os cobriu e em segundos o táxi freou, o cara pagou e saiu correndo com a mochila nas costas na direção do balcão de check-in da empresa aérea. Faltando 20 minutos para as seis ele conseguiu relaxar. Agora era só esperar a chamada do vôo. Gonzagão voltou a animar o cara no discman cantando "tá é danado de bom, tá danado de bom, meu cumpade, tá é danado de bom, forrozinho, bonitinho, gostosinho, safadinho, danado de bom." Finalmente relaxado após toda aquela correria bem sucedida, o cara sorria feliz da vida.

Olhou pro relógio do aeroporto e viu que só faltavam cinco minutos pras seis. Por que será que ainda não chamaram pra sala de espera? Decidiu ir mesmo assim, seguindo o bilhete e as indicações nas placas. Entrou e notou que o salão de espera estava vazio. Foi perguntar à comissária que recebe os bilhetes aonde estava o seu vôo. "É aquele avião ali, taxiando na pista... o senhor não ouviu a chamada?"

Alucinado, o cara se atirou na porta de vidro, com esperanças de que pudesse atravessá-la, correr atrás do avião em movimento, se agarrar no trem de pouso e seguir viagem assim mesmo. Tudo em vão, claro. "Eu não tenho mais dinheiro pra pegar outro vôo! Como eu vou fazer pra sair daqui? Pelo amor de Deus, alguém pode me ajudar?", isso tudo aos berros, descontrolado. A comissária o acalmou, o levou para a sala vip e disse que ele embarcaria no avião seguinte para o Rio, que partiria uma hora e meia depois. Mais calmo, o cara lembrou que tinha tudo calculado para chegar no aeroporto internacional do Rio antes do ônibus frescão terminar seu turno do dia, às nove da noite. Que se dane! No Rio ele daria um jeito! E foi fazer uma refeição reforçada numa lanchonete moderna do aeroporto de Salvador. Sem camarões suspeitos, por favor.

Já no Rio, no saguão de desembarque, ainda pensando na falta de ônibus, o cara esbarrou com um sujeito estranho que tinha estudado no mesmo colégio que ele em outra série, e de quem todos zombavam. Por mais que tentasse não lembrava o nome dele. "E aí, rapaz! Você por aqui? Tá vindo de onde? Alguém vem te pegar? Tá de carro? Não sabia que você dirigia, que legal! O carro tá cheio? Será que cabe mais um?"

Com a mochila no colo, espremido entre dois parentes sisudos do ex-colega de colégio semi-desconhecido, o cara desembarcou com educados salamaleques pré-fabricados na frente do seu prédio. Chave na porta, mochila jogada no sofá, o cara se atirou na cama, ainda com resquícios de poeira baiana nas calças. Banho, só no dia seguinte. O mais importante é que ele tinha chegado são e salvo. O cara tinha sobrevivido a mais uma.

 

5 comentários:

  1. Ahahhaa!
    Piriri
    ao som de Gonzagão
    tinha visto não!!!

    Boaaa!
    :))

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  2. Por muito pouco essa viagem não virou uma tragédia pessoal pro cara, hein, Lua!

    :-)P

    Beijão!

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  3. Oz, mal posso esperar pra uma coleção de contos, ou ainda melhor: UM ROMANCE!!!!!

    Abraços
    Jaime

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  4. Obrigadão pela força, Jaime! Mas por enquanto prefiro desenvolver meus contos, aliás o formato literário que mais aprecio e leio.

    Na minha auto-crítica, ainda não consegui superar a qualidade de "O Cara e o Bidê de Rosemary" (que considero o melhor texto que escrevi nos últimos dois anos!) nem a rapidez e a concisão de "O Cara e o Teclado", mas continuo experimentando, sempre!

    Quanto ao romance, há poucos meses soltei aqui no Multiply a idéia que estava desenvolvendo em cima de três personagens curiosos, não sei se você leu. Quem sabe eles não continuam me contando suas histórias e aquilo vira um romance? ;-)

    Abraços

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  5. Senti o mesmo, Oz, depois de ter lido a "aventura na chapada" e "a volta pra casa". Gostei dos dois, mas não tanto quanto os que vc citou. Este últimos que li pareceram mesmo capítulos, não tanto contos, que pelo que entendi é o seu propósito. Mesmo assim se deixam ler fácil!
    Volto outra hora para ler mais, porque estou atrasado demais na tua série do Cara, hehehe!
    Abração!

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