O livro escorregou do seu colo e caiu no chão. O sr. Ballard continuou sentado com uma expressão desapontada nos olhos. Seus olhos lhe doíam. O volume adormecido aos seus pés esperava por uma reação - que não aconteceu. O homem cansou-se da leitura. Achou mais interessante estudar o eco provocado pela queda do livro. Cheirava aquele som. Depois de tantos anos, tantos séculos, seus sentidos misturavam-se. Era infantilmente divertido sentir o sabor da luz, ouvir o suave frio da tarde... cheirar o eco de um livro que cai. Importava-se mais com essa percepção instintiva do que em ler. Mesmo livros não adiantava mais. Aliás, nunca adiantara nada. Tinha passado toda a sua existência naquela casa e nunca tinha visto outro ser igual a ele.
Convivia, isso sim, com gatos. Gatos vagabundos que iam e vinham, faziam-lhe companhia e sumiam. Conhecera dezenas, centenas, milhares, milhões. Só gatos. Nunca os mesmos. Todos vinham e iam. Sempre. Deviam formar uma grande população se por acaso se encontrassem todos juntos. Se por acaso, bem longe dali, pois pelo que sabia, gatos miavam e nunca tinha sentido o cheiro de nenhum miado nas redondezas, em todo esse tempo. Os gatos surgiam do nada e voltavam para onde tinham vindo. Talvez como ele. Desde que surgira do nada pensava nisso. O sr. Ballard viu o pelo morno de Jones, um gato malhado muito esperto que o visitava ultimamente, roçando-lhe a perna da calça. O gato coleou preguiçosamente para a janela da frente e pulou sobre o parapeito. Olhava para o sr. Ballard e para fora seguidamente, como um convite. Um convite, uma reação que dessa vez aconteceu.
O homem levantou-se, dirigiu-se para a porta e ousou. Pela primeira vez na sua existência de séculos cruzava aquela soleira. Abriu a porta e, tardiamente, hesitou. A luz, a atmosfera exterior envolveu-o por completo e o sr. Ballard tombou sem emitir um som. A luz o sorveu, mastigou, comeu toda a carne do seu corpo.
Jones olhou sem espanto. Aproximou-se e cheirou o que sobrara daquele homem milenar. Nada especial. Virou-se e caminhou para o nada além da porta, talvez para junto dos outros da sua espécie. Já não fazia diferença para o sr. Ballard. Muito menos para os gatos.
* * * * * * * * * * *
(Conto escrito há mais de 20 anos. Foto gatunada do fotolog http://www.fotolog.net/buntekuhs)
crash
ResponderExcluir??????
ResponderExcluirNão entendi, Ana.
Dá-lhe Cortázar...
ResponderExcluirRememore, meu caro, não deixe de rememorar, mesmo que pareça distante o que foi dito apenas ontem.
Adorei.
Abraço
Sabe que nem tinha pensado em Cortázar, Ricardo? Mas tem um pouco sim. E muito de Rod "Além da Imaginação" Serling, uma pitada de Richard Matheson, um dedo de Robert "Psicose" Bloch e um cheiro de Ray Bradbury. Pelo menos são os caras que eu mais lia naquela época.
ResponderExcluirQue bom que gostou! Tenho outro texto da mesma época tirado do fundo do baú. Posto aqui em breve.
Abração!
Adorei!
ResponderExcluirEles são anjos a nos proteger!
Bjs
Muito bom! Como tudo que você escreve, Oz!!!
ResponderExcluirBeijão!!!
Ps.: Tô muito atolada, por isso não animei fazer o amigo oculto.
Assim que der te escrevo com calma, tá?
...e vou mudar a cor do meu site tb :-)